1.
hoje eu lembrei de meu pai.
lembrei porque meu irmão veio morar por um tempo comigo. meu irmão é a cara do meu pai. cabelo cheio, de fio grosso, liso, da cor preta. corpo magro, esticado. alto. pouco pelo facial. perdi as contas do tempo que não vejo meu pai. talvez há mais de dez anos. sei que ele mora em vila verde, distrito de pancas, a uns 200 km da capital, vitória. umas três horas e meia de carro, treze horas de bicicleta ou dois dias a pé.
2.
tenho poucas memórias dele. moramos juntos até a fria manhã de 16 de junho de 2002. naquele dia, o papa joão paulo ii declarou padre pio um santo, o senegal venceu a suécia por 2 a 1 na copa do mundo e eu completava nove anos de idade. lembro de despertar com gritos no quarto ao lado. de salto, abri os olhos e ouvidos. era mais uma briga dos meus pais. habitual. porém, logo notei que aquela era diferente. havia mais raiva, ódio e cheiro de pinga no ar.
3.
meu pai era alcoólatra. vivia em ondas. tenho imagens dele deitado no sofá, coçando a cabeça. lembro das caspas caindo da cabeleira dele e de como ele olhava fixamente para o nada. lembro que ele mal falava. respondia em sílabas às perguntas que eu fazia. lembro que eu tinha muita curiosidade em entender aquele homem calado. certo dia, ele chegou em casa serelepe, pronunciando frases longas. debaixo do braço, vários discos. em suas andanças a esmo, havia encontrado no lixo uma maleta que continha dezenas de vinis. feliz, exibia as capas de got to be there, de um michael jackson criança, it must have been love, do duo sueco roxette, e um disco de a turma do balão mágico.
4.
o último dia que moramos juntos foi um terror. acredito que, desde que tomei ciência de estar presente neste mundo, meu pai batia na minha mãe. todo mundo sabia. fazia parte da rotina. quase ninguém se metia. ainda não existia maria da penha. a lei.
5.
a presença e a ausência dele eram esmagadoras. o silêncio pesava quando ele estava, a ansiedade pairava quando ele não estava e o medo nos engolia quando ele retornava. nunca sabíamos se aquela era uma boa ou má onda. era como jogar dados: se caísse 2, 4 ou 6, era uma boa onda; se desse 1, 3 ou 5, era uma má. tapas! gritos. chutes. palavrões. gritos. choro. muito choro. choro de mulher, choro de criança. e então, silêncio.
6.
ele agredia minha mãe. lembro que, pequena, não entendia por que ele batia nela, por que ela não batia nele de volta e por que ninguém separava os dois. no último dia que moramos juntos, eu intervi. e talvez essa minha atitude tenha sido o motivo para tornar inaceitável todo aquele ambiente de violência doméstica e familiar. naquela fria manhã de junho, eu havia acordado com o barulho de vozes adultas discutindo.
levei alguns minutos para entender que era mais uma briga. então, levantei, acordei minhas duas irmãs e fui à cozinha. peguei um banquinho, me apoiei na pia e peguei todas as facas disponíveis no armário. desci do banquinho e, com um pano de prato, enrolei as facas e as escondi debaixo da minha cama. eu e minhas irmãs seguimos para o quarto ao lado.
minha mãe, chorando muito, segurava meu irmão de três anos no colo. meu pai, de pé, esbravejava coisas incompreensíveis. sentamos ao lado da minha mãe e assim ficamos por horas. até que, em um momento, quando meu pai se virou para socar uma cômoda, eu levantei da cama e, com um ímpeto de coragem e medo, saltei para cima das costas dele.
no entre decidir saltar e saltar de fato, um turbilhão de sentimentos e emoções. talvez aquele dia eu tenha sentido pela primeira vez o medo da morte. vi minha mãe morta. vi as mãos dele sujas com o sangue dela. vi eu e meus irmãos sozinhos. me vi em desespero correndo pelas ruas pedindo ajuda. vi muitas possibilidades trágicas para minha família e então pulei.
me agarrei em seus ombros na frustrante tentativa de pará-lo. no entanto, ele, com mais fúria, com mais força, se sacudiu e me jogou de volta na cama. no segundo seguinte, tudo me passou em câmera lenta.
7.
eu, caída de costas na cama; minhas irmãs, chorando; minha mãe, desesperada; meu irmão, chorando; a mão do meu pai se fechando em um punho; a mão dele vindo em minha direção; minha mãe se levantando na minha frente; a mão dele indo de encontro à face da minha mãe. um soco. um soco pouco abaixo do olho direito. ouvi o crack—ele quebrou a cara da minha mãe com um soco. minha mãe cambaleou, zonza, com meu irmão ainda no colo. sangue escorreu. mais choro, choro, choro. gritos. e então, um borrão.
8.
naquele 16 de junho de 2002, dia em que o papa consagrou mais um santo católico, dia em que o senegal estava em festa, dia em que eu começava os meus nove anos, naquele dia, a vizinhança se meteu na briga dos meus pais. chamaram um tio, meu tio apareceu. conseguimos escapar.
9.
essa foi a última vez que moramos juntos. busco agora alguma outra lembrança sobre ele e são poucas. como o dia em que ele caiu de bicicleta enquanto carregava eu e minha irmã. ou quando ele nos levou para um retiro evangélico. ou quando instalou no nosso quarto uma caixa de som e assim ouvíamos, de dentro do nosso quarto, os discos que ele punha para tocar. são só essas. juro. e é estranho, afinal, foram nove anos convivendo com aquele homem, meu pai.
10.
as lembranças que haviam se misturaram ao ódio e à raiva. às vezes, paro e busco lá no fundo alguma memória boa sobre ele, mas não encontro. não existe. ele mal parava em casa. e, quando estava, era sempre violento. ele nunca nos bateu, mas batia em nossa mãe, e a dor dela a gente também sentia. fico tentando entender por que ele não nos batia, mas batia nela. sem dó. sem piedade. nem no dia em que cortei os cabelos das minhas irmãs brincando de salão de beleza, nem nesse dia ele me bateu. na verdade, nesse dia, eu vi fúria e arrependimento no olhar dele. isso porque, quando me flagrou picotando os cachos das menores, ele me prensou na parede pelo ombro com tanta força que pensei que iria atravessar para o outro lado. ali, eu vi a fúria dele; porém, sóbrio, logo veio o arrependimento, e ele me soltou com gritos como repreensão.
11.
depois daquele fatídico dia, minhas lembranças sobre ele se misturaram ao medo, ao não entendimento de tudo aquilo, às crises de choro, aos pesadelos repetitivos, ao mijo na cama, à fragilidade da minha saúde toda vez que se aproximava meu aniversário, à raiva, à insegurança, à desconfiança. naquele dia, minhas lembranças sobre meu pai se fundiram ao ódio ao meu pai: um homem que nunca soube ser pai, um homem que despejou toda sua merda existencial e frustrações sobre a esposa e os filhos.
12.
aqui não sobrou nenhum espaço de amor para ele. desde os meus nove anos, acho que nos vimos mais umas três ou quatro vezes. a última, acho que ainda estava no ensino médio. sei que ainda está vivo; se morto estivesse, certamente a notícia chegaria. de qualquer forma, pouco me importa. não há amor. não há admiração. não há respeito. não há nada além de incompreensão diante do tamanho de sua violência com quem ele supostamente deveria direcionar amor. nunca houve—por parte dele—e não há—por parte minha e possivelmente dele—amor. e é um alívio, porque penso no peso que seria amar alguém que quase me matou.
Caramba, até esqueci como respira! Que texto, que história…
Gosto tanto da forma que você ambienta os seus textos, a forma como você introduz tópicos que em um primeiro instante parece algo banal (papa, futebol, etc), mas que no final faz total sentido. Texto incrível, forte, cru! Sou seu fã! ♥